Sinta-se em casa...!



agosto 18, 2011

Escutatória




ESCUTATÓRIA

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar... ninguém quer aprender a ouvir.
Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é difícil e sutil. Diz Alberto Caeiro que... Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores, é preciso também não ter filosofia nenhuma.
Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia. Parafraseio o Alberto Caeiro: Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito, é preciso também que haja silêncio dentro da alma. Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor...
Sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração... E precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade. No fundo, somos os mais bonitos...
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios: reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. Vejam a semelhança... os pianistas, por exemplo, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio... abrindo vazios de silêncio... expulsando todas as ideias estranhas. Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos... pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se eu falar logo a seguir... são duas as possibilidades. Primeira: fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado. Segunda: ouvi o que você falou. Mas, isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha pra mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.
Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior do que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou. E assim vai à reunião. Não basta o silêncio de fora. É preciso o silêncio de dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.
Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência... E se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras... no lugar onde não há palavras. A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia... A beleza que se ouve no silêncio.
Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.

Fonte: ALVES, R. Escutatória. Disponível em: . Acesso em: 24 nov. 2009.

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